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III. O DIREITO CANÔNICO

  1. HISTÓRICO

    1. Desde os tempos da Igreja primitiva, foi costume fazer coleções de sagrados cânones, a fim de facilitar-lhes o conhecimento, uso e observância, sobretudo aos ministros sagrados. O Papa Celestino advertia em carta aos Bispos constituídos na Apúlia e Calábria (21-07-429): "a nenhum sacerdote é lícito ignorar seus cânones".

    2. O IV Concílio de Toledo (ano 633) prescreve para a restauração da disciplina na Igreja, libertada do arianismo, no Reino dos Visigodos: "Os sacerdotes conheçam as escrituras sagradas e os cânones", porquanto "a ignorância, mãe de todos os erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus".

    3. Durante os 10 primeiros séculos
      1. Florescem, em diversos lugares, numerosas coletâneas de leis eclesiásticas, quase sempre compiladas por iniciativa particular;
      2. Continham, principalmente, as normas emanadas dos Concílios e dos Romanos Pontífices, como também outras tiradas de fontes menores.

    4. O Sétimo Concílio Ecumênico de Nicéa (787), considerou os sagrados cânones de diversos autores anteriores, como um único Corpus de leis eclesiásticas e confirmou como Código para todas as Igrejas orientais.

    5. Na metade do século XII, o monge Graciano organiza um acervo de coleções e normas (por iniciativa particular, contrárias entre si), com o objetivo de estabelecer a concordância das leis e coleções. Denomina-se Decretum Gratiani, a primeira parte da grande coletânea de leis da Igreja, chamada, pelo papa Gregório XIII em 1580, de "Corpus Juris Canonici" (a exemplo do "Corpus Juris Civilis", do imperador Justiniano). Consta do:
      • Decreto de Graciano: continha as leis anteriores, também denominado Concórdia ou Concordantia discordantium canonum. Contém 101 distinções dedicadas ao direito a às suas fontes, aos clérigos e à sua ordenação, em 36 causas relativas às mais variadas matérias como o processo, o patrimônio, os religiosos, o Matrimônio e a Penitência, tratada de um modo particularmente amplo, cinco distinções referentes ao culto, aos sacramentos e aos sacramentais.
      • Liber Extra: de Gregório IX, ou Decretales Gregorii IX (Coleção das decretais de Gregório IX); é subdividida em 5 livros (juiz, juízo, clero, matrimônio e delito). É promulgado em 1234 pela bula Rex Pacificus, atribuindo força de lei para a Igreja universal, e exclusivo, vetando o recurso a qualquer outra coleção que não seja o Decretum de Graciano.
      • Liber VI (ou Liber Sextus): de Bonifácio VIII, que em 1298 sublinha a continuidade com os cinco livros do Liber Extra. Estão reunidos, com modificações de tal modo profundas, a ponto de aproximar, em certos aspectos, esta coleção às modernas codificações, os decretos dos concílios gerais celebrados em Lyon em 1245 e em 1274, e os decretais posteriores a 1234.
      • Clementinas (ou Clementinae): coleção de Clemente V; compreende, quase exclusivamente, atos de Clemente V, que, depois de uma primeira promulgação feita por este Pontífice, são revistas e promulgadas por João XXII em 1317. Diversamente dos livros Extra e Sextus, não em valor exclusivo, deixam em vigor as decretais precedentes, salvo no que dispunham em sentido contrário a elas.
      • Extravagantes: de João XXII; coleção de caráter puramente privado, publicada por João Chappuis em 1500. Reúne 20 decretais de João XXII (1316-1334).
      • Extravagantes Communes: de vários Pontífices nunca reunidas em coleção autêntica. Coleção de caráter puramente privado, publicada por João Chappuis em 1503. Reúne 70 decretais atribuídos a vários papas, de Urbano IV (1261-1264) a Sisto IV (1471-1484).

    6. O direito eclesiástico, contido nesse Corpus, constitui o direito clássico da Igreja Católica (sendo comumente assim denominado). A tal Corpus do direito da Igreja Latina corresponde, de algum modo, o Syntagma Canonum ou Corpus Canonum Orientale da Igreja Grega.

    7. Leis posteriores (principalmente as do tempo da contra-reforma católica dadas pelo Concílio de Trento, e promulgadas posteriormente por vários Dicastérios da Cúria Romana), nunca foram reunidas numa coletânea única. Esse o motivo que, com o correr dos tempos, tornou a legislação paralela ao Corpus juris Canonici, um "imenso acúmulo de leis sobrepostas umas às outras".

    8. No Concílio Vaticano I (1869/1870), os bispos solicitam uma nova e única coletânea de leis. O Papa Pio X (1903/1914) propõe-se a coligir e reformar todas as leis eclesiásticas.

    9. Bento XV (1914-1922), em 27-05-1917, publica na AAS (Acta Apostolicae Sedis) de 28-06-1917, a Constituição Providentissima Mater Ecclesia, promulgando o primeiro Código de Direito Canônico (Código Pio-Beneditino) para a Igreja latina. Entra em vigor em 19-05-1918. Compõem-se de 2.414 cânones, redigidos em forma breve, abstrata e sem menção de suas motivações, distribuídos em 5 livros. Não tem universalidade absoluta, pois só se refere à Igreja latina. Tinha a seguinte estrutura:
      • Livro I: Normae Generales (trata das leis e da sua eficácia, dos costumes, do cômputo do tempo, dos rescritos, privilégios e dispensas).
      • Livro II: De personis (contém a disciplina relativa aos clérigos, aos religiosos, aos leigos).
      • Livro III: De Rebus (refere-se aos sacramentos, aos lugares e tempos sagrados, ao culto divino, ao magistério eclesiástico, aos benefícios e outros institutos não colegiais, aos bens temporais).
      • Livro IV: De processibus (considera os juízos, as causas de beatificação e canonização, e alguns procedimentos especiais a respeito dos clérigos).
      • Livro V: De delictis et poenis (disciplina a matéria penal).

    10. Pio XI, em 1929, durante o Concílio Vaticano I, confia os trabalhos preparatórios a uma comissão cardinalícia, para a codificação dos direitos dos orientais.

    11. Em 1935, a comissão para codificação é transformada numa comissão para a redação do código de direito canônico oriental.

    12. Em 1943, é impresso um primeiro esboço do código de direito canônico oriental. Em 1945 é impresso um novo projeto (esquema), com numerosas modificações.

    13. Pio XII (1939/1958), em 22-02-1949, pela Carta Apostólica Crebrae allatae sunt, promulga os cânones sobre o sacramento do matrimônio, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em 02-05-1949.

    14. Pio XII (1939/1958), em 06-03-1950, pela Carta Apostólica Sollicitudinem Nostram, promulga os cânones sobre os processos, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em 06-01-1951 (Giorgio Feliciani no livro As Bases do Direito da Igreja, Paulinas, 1994, indica a data de 06-01-1950, porém, de acordo com o Prefácio da edição de 1994, do CCEO, editado pela BAC, consta a data de 06-03-1950).

    15. Pio XII (1939/1958), em 09-02-1952, pela Carta Apostólica Postquam Apostolicis Litteris, promulga os cânones sobre os religiosos, os bens temporais da Igreja e o significado dos termos, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em 21-11-1952.

    16. Pio XII (1939/1958), em 02-06-1957, pela Carta Apostólica Cleri sanctitati, promulga os cânones sobre os ritos orientais e sobre as pessoas, para as Igrejas orientais. Entra em vigor em 15-08-1958.
      Assim, as partes promulgadas constituíam os seguintes títulos pela ordem do projeto do futuro Código:
      • Título II: Dos Ritos Orientais.
      • Título III: Das pessoas físicas e morais.
      • Título IV: Dos clérigos em geral.
      • Título V: Dos clérigos em particular.
      • Título XIV: Dos monges e dos religiosos restantes.
      • Título XVII: Dos leigos.
      • Título XIX: Dos bens temporais e da Igreja.
      • Título XXIV: Do significado dos termos.

    17. Promulgaram-se, no total, 3/5 partes dos 2.666 cânones que constituíam o projeto do futuro Código do ano de 1945. Os 1.095 cânones restantes permaneceram no arquivo da Comissão.

    18. João XXIII, em 25-01-1959, dá a primeira notícia do Sínodo de Roma e do Concílio Vaticano II. Início: 11-10-1962. Realizado em quatro períodos: de 11-10 a 08-12-1962, de 29-09 a 04-12-1963, de 14-09 a 21-11-1964 e de 14-09 a 08-12-1965.

    19. Após a conclusão do Concílio Vaticano II, segue-se intensa atividade legislativa por parte da Santa Sé, emanando as necessárias normas de concretização das decisões conciliares e introduzindo no ordenamento jurídico canônico as reformas que parecem ser exigidas. Entre as numerosas disposições podem ser destacadas:
      • a instituição do Sínodo dos bipos (Motu Proprio Apostolica Sollicitudo, de 15-09-1965);
      • as normas relativas à faculdade de dispensa dos bispos (Motu Próprio De episcoporum muneribus, de 15-06-1966);
      • as disposições para aplicação de alguns decretos conciliares (Motu Proprio Ecclesia sanctae de 06-08-1966);
      • a restauração do diaconato permanente na Igreja latina que torna acessível este grau da ordem sacra também às pessoas casadas, como já era previsto pela constituição Lumen Gentium (Motu Proprio Sacrum diaconatus ordinem de 18-06-1967);
      • o reordenamento da Cúria romana (constituição Regimini Ecclesiae universae de 15-08-1967);
      • a nova disciplina relativa às funções dos legados pontifícios (Motu Proprio Sollicitudo omnium Ecclesiarum de 24-06-1969);
      • as inovações à normativa dos matrimônios mistos (Motu Proprio Matrimonia mixta de 31-03-1970);
      • as normas que privam os Cardeais, de mais de 80 anos, do direito de eleger o Pontífice e da qualidade de membros dos dicastérios da Cúria romana (Motu Proprio Ingravescentem aetatem de 21-11-1970);
      • a agilização do procedimento dos processos matrimoniais (Motu Proprio Causas matrimoniales de 28-03-1971);
      • a nova disciplina da primeira tonsura, das ordens menores e do subdiaconato (Motu Proprio Ministeria quaedam de 15-08-1972);
      • as disposições acerca da vacância da Sé apostólica e a eleição do Pontífice (Constituição Romano Pontífice eligendo de 01-10-1975).

    20. João Paulo II, em 25-01-1983, pela Constituição Sacrae Disciplinae Legis, promulga o segundo Código de Direito Canônico para a Igreja latina. Entra em vigor em 27-11-1983.

    21. João Paulo II, em 28-06-1988, promulga a Constituição Apostólica Pastor Bonus, sobre a Cúria Romana. Entra em vigor em 01-03-1989.

    22. João Paulo II, em 18-10-1990, pela Constituição Sacri Canones, promulga o Código de Cânones das Igrejas Orientais. Entra em vigor em 01-10-1991.

    23. João Paulo II, em 18-05-1998, pela Carta Apostólica sob a forma de Motu Próprio Ad Tuendam Fidem, altera os cânones 750 e 1371 do Código de Direito Canônico, e os cânones 598 e 1436 do Código de Cânones das Igrejas Orientais.

  2. LEI FUNDAMENTAL DA IGREJA (Lex Ecclesiae Fundamentalis)

    "A LFI, concebida como Lei constitucional comum e prévia à promulgação dos Códigos Latino e Oriental, embora nunca tenha passado de um Projeto (Schema), nem tenha sido promulgada, todavia constitui o fundamento central das aspirações reformadoras do direito eclesial e marcou a sistemática do Código de 83 e até chegou a ser recebida substancialmente por ele. A idéia de uma LFI surge dentro do Concílio Vaticano II, quando, em 8 de dezembro de 1963, o Bispo Maronita Khoreiche, do Líbano, pede uma 'lei fundamental', que fosse válida para toda a Igreja, tanto oriental como latina.

    Foi, porém, Paulo VI, quem, de forma oficial, explicitando suas idéias, expressas na Encíclica Ecclesiam suam, propôs, em 29 de novembro de 1965, aos Cardeais Membros e aos Consultores da Comissão Pontifícia para a reforma do Código de Direito Canônico, 'a peculiar e grave questão, visto que há um duplo Código de Direito Canônico, um para a Igreja Latina, outro para a Igreja Oriental, se não conviria elaborar um Código comum e fundamental, contendo o direito constitucional da Igreja (ius constitutivam Ecclesiae continens)' " (Dicionário de Direito Canônico. Carlos Corral Salvador e José Maria Urteaga Embil. Edições Loyola).

    "(...) Muitos elementos distinguem o direito oriental do latino, para que se possa reuni-los em um Código único, sem sacrificar um ao outro; e o direito que seria sacrificado seria certamente o direito oriental. Que se pense na terminologia muitas vezes diferente, como também nas instruções próprias do Oriente, como a do Patriarcado, dos sínodos, do rito, das eleições episcopais, etc... Que se pense nas instituições que não existem em direito oriental autêntico, como a dos cônegos, dos benefícios, das censuras 'latae sententiae' etc.

    Assim, enquanto no direito latino um só cânon basta para regulamentar a instituição patriarcal, considerada como simples honra, é preciso, no direito oriental, mais de duzentos cânones para determinar a instituição patriarcal. Pelo contrário, em direito oriental autêntico, o tratado 'de delictus et poenis', poderia caber em quatro páginas. Como fazer um Código único com elementos tão diferentes?" (A Igreja Greco-Melquita no Concílio - Discursos e Notas do Patriarca Máximo IV e dos Prelados de sua Igreja no Concílio Ecumênico Vaticano II. Edições Loyola).

    "(...) Como se concebia a LFI? Em primeiro lugar, como Lei, isto é, enquanto norma jurídica positiva (ou melhor, positivada, em forma de cânones ou artigos); como Fundamental, quer dizer, como norma suprema e universal, que estivesse por cima de todas as demais leis ordinárias em toda a Igreja, tanto Universal, como Particulares, de qualquer rito. Fundamental, em sentido jurídico, é o mesmo que Constitucional, pois expressa, em linguagem jurídica, e somente sob essa perspectiva - necessariamente limitada e incompleta -, a estrutura básica da Comunidade Eclesial, de modo puramente ao que são as Constituições dos Estados (chamam-se Cartas Constitucionais ou Leis fundamentais).

    Adota-se o termo Fundamental para se evitar, assim, a palavra mais usual, na linguagem jurídica civil e para desfazer o equívoco que possa ou poderia provocar o termo Constitucional, como se a Igreja não possuísse, já, sua própria Constituição, tanto no sentido dogmático, como no pastoral (a Constituição Dogmática da Igreja, Lumen Gentium e a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual, a Gaudium et Spes). Descartou-se o termo Código, pois tal denominação significa, mais precisamente, codificação ou coleção de leis.

    Embora não tenha nascido, a LFI projetada contém um valor absoluto em sí mesmo e um valor relativo de vigência. O valor absoluto lhe é atribuído, em primeiro lugar, por ter constituído uma tentativa séria de apresentar, tanto à Igreja Universal como às Particulares, uma lei tal, que fosse, de verdade, comum a todas elas, justamente na ocasião em que todos, seus representantes se encontraram num Concílio - o Vaticano II -, ao mesmo tempo em que se previa a reforma de ambos os Códigos, o latino e o oriental, cujos princípios e estruturas básicas tinham sido marcados pelo Concílio. (...) O valor relativo de vigência compete à LFI por ter determinado a sistemática do Código, informando seu conteúdo e passado em sua maior parte ao Código" (Dicionário de Direito Canônico. Carlos Corral Salvador e José Maria Urteaga Embil. Edições Loyola).

    "Em todo o caso, a objeção de que a Igreja não pode dotar-se de uma lei constitucional, porque já está contida no Evangelho, parece superável, uma vez definitivamente esclarecida a natureza jurídica da Lex Ecclesiae fundamentalis. (...) Deve-se salientar que, em seu conjunto, as críticas aos diversos esquemas da Lex Ecclesiae fundamentalis são tidas como merecedoras de atenta consideração por parte da autoridade. De fato, não só o projeto foi colocado de lado mas, como melhor se mostrará em seguida, João Paulo II, apresentando o novo Código, indicou que no Evangelho está contida a única verdadeira e insubstituível lei fundamental da Igreja." (As Bases do Direito da Igreja. Comentários ao Código de Direito Canônico. Giorgio Feliciani. Edições Paulinas).